PURIFICAÇÃO
Não é propositado o meu silêncio.
São as próprias palavras que não querem
Dizer nada de mim.
Cansaram-se do uso
E do abuso
Que fiz delas
A vida inteira.
Prostituídas na minha voz,
Que o tempo corrompeu,
Mentirosas nas horas mais sinceras,
Regressaram de novo à virgindade
Que lhes roubei.
E aguardam servir outra humanidade
Que comece por onde comecei.
M.T., Coimbra, 28 de Julho de 1979
INVERNO
Apagou-se a fogueira.
Que frio na lareira
Do coração!
Neva
Na solidão
Da vida.
E o vento traz e leva
Um recado de eterna despedida.
Amor! Amor!
Sei ainda o teu nome redentor,
Chamo ainda por ti a cada hora!
Arde outra vez em mim
Como ardias outrora,
Nos dias de ventura,
Não me deixes assim
Nesta algidez de morte prematura.
M.T., Coimbra, 17 de Janeiro de 1978
ADEUS
É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer
A humanidadeDa nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de lírico pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.
M.T., Coimbra, 5 de Junho de 1978
ARQUIVO
Tão baço o teu retrato
No álbum da lembrança!
Que vaga semelhança
Entre a imagem que vejo
E a dor que sinto!
Minto
Se te disser
Que te desejo ainda,
Que o meu instinto
Te reconhece e quer.
E sei que um dia me perdi
Em ti
Como se perde o homem na mulher.
M.T., Coimbra, 20 de Junho de 1978
ALVORADA
Amanhece.
Pelas frestas da vida
A luz
Reluz.
Vai começar o dia dos sentidos,
Da razão
E do medo,
Sensações,
Lucidez,
E uma pedra de angústia sobre o peito.
Mas é ressuscitar!
É renascer!
É levantar a tampa do caixão
E ser de novo Adão
Com a maçã ainda por comer.
M.T., Chaves, 13 de Setembro de 1978
MEMÓRIA
Com que saudades te recordo agora,
Lirismo antigo!
Odes de juventude
Cantadas com saúde
E alegria.
O sol do meio-dia
A pino no poema...
Tão pura cada imagem!
Tão viva a pulsação de cada verso!
Nunca em nenhum momento
O desalento
Deste triste reverso
Da inspiração.
Esta morte acordada
A olhar, calada,
A tampa do caixão.
M.T., Coimbra, 14 de Outubro de 1978
MUSA
Se vens, perco a razão
E digo o que não quero.
Se não vens, desespero
E gasto o coração
A desejar-te.
Ah, como é difícil a arte
De te ser fiel!
E como é cruel
A tua tirania!
Noite e dia
Pregado
A um madeiro sagrado
De amargura.
Duramente sujeito,
Ou então contrafeito
Na minha liberdade sem loucura.
M.T., Coimbra, 9 de Janeiro de 1979
SOLIDÃO
Não aprendo a lição.
A vida bem me ensina
Mas a minha atenção
Perde-se em cada esquina
Do caminho.
Adivinho
O que sei.
E nunca sei senão que me enganei
E que vou mais sozinho.
Por isso canto a dar sinal de mim
E a exorcizar o medo.
Este medo
Em segredo
Que me atormenta.
Medo animal,
Primordial,
Carnal,
Que quanto mais avanço mais aumenta.
M.T., Coimbra, 22 de Janeiro de 1979
PERFIL
Não. Não tenho limites.
Quero de tudo
Tudo.
O ramo que sacudo
Fica varejado.
Já nascido em pecado,
Todos os meus pecados são mortais.
Todos são naturais
À minha condição,
Que quando, por excepção,
Os não pratico
É que me mortifico.
Alma perdida
Antes de se perder,
Sou uma fome incontida
De viver.
E o que redime a vida
É ela não caber
Em nenhuma medida.
M.T., Coimbra, 2 de Março de 1979
ROGO
Não, não rezes por mim,
Nenhum deus me perdoa a humanidade.
Vim sem vontade
E vou desesperado.
Mas assinei a vida que vivi.
Doeu-me o que sofri.
Fui sempre o senhorio do meu fado.
Por isso, quero a morte que mereço.
A morte natural,
Solitária e maldita
De quem não acredita
Em nenhuma oração
De salvação.
De quem sabe que nunca ressuscita.
M.T., Coimbra, 16 de Abril de 1979
UM POEMA DE AMOR
É um poema de amor.
Começa num sorriso promissor
E acaba num soluço
De saudade.
Entre essas duas margens,
Um rio de silêncio.
Um rio largo, onde se espelha, baça,
A paisagem severa de uma vida,
A que faltou a graça
Dessa remota hora repetida.
M.T., Coimbra, 15 de Maio de 1979
Estou diariamente à tua espera
ResponderEliminarComo quem espera um astro pela noite.
Defino-te em segredo.
Revejo-te na memória.
Desenho a tua fronte nas estrelas
Invento-te.
Construo a tua boca sem palavras.
Construo este silêncio em que me prendo
João Rui de Sousa
Circulação, 1960
Blog Poesia dos Dias Úteis
PROSPECÇÃO
ResponderEliminarNão são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.
Miguel Torga
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ResponderEliminarLIVRO DE HORAS
ResponderEliminarAqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três, e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!
Miguel Torga
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