quarta-feira, 30 de junho de 2010

A Terra Pura de Alan Spence

Segundo a editora (Presença), A Terra Pura é um romance absorvente onde dois mundos distantes e antagónicos, Oriente e Ocidente, se encontram na figura do protagonista, criando uma história arrebatadora. O livro inicia-se assim:

1
O PORTAL SEM PORTA
Nagasáqui, 1945

    Se Tomisaburo não tivesse visto com os seus próprios olhos, não teria acreditado. Aquilo era o terrível fim de tudo, a aniquilação, o nada. Uma única explosão devastara metade da cidade, destruíra-a num instante, reduzíra-a a escombros e pó. A casa dele ficava em Minami Yamate, a colina a sul, sobranceira à baía. Era longe do epicentro, e encontrava-se protegida a sotavento. Esse simples facto salvara-a da destruição.
    Ele estava sentado à secretária, contemplando o pinheiro lá fora, no jardim, a árvore que dera o nome à casa, Ipponmatsu, Pinheiro Solitário. A árvore era anterior à casa, já lá se encontrava antes de o pai dele ter escolhido o local e lançado as fundações. Fora a primeira casa ocidental da colina, construída de pedra. Se fosse feita de madeira e papel, ter-se-ia desfeito em cinzas naquele vento escaldante?
    Na semana anterior, tinha aberto o Sutra do Diamante e passado as páginas, à procura de um significado. «Despertar a mente sem a fixar em parte alguma.» O poeta Basho escrevera: «Aprende acerca do pinheiro com o pinheiro.» Aprende como lamentar. Actualmente tudo era uma meditação sobre transitoriedade, efemeridade. Ele era um velho. Fora uma crueldade da Kenpeitai, a polícia não tão secreta como isso, interrogá-lo. Devido aos seus antecedentes tinham pensado que ele era um espião. Era o seu destino, o seu karma, ser apanhado entre dois mundos. Nem uma coisa nem outra. Nem carne nem peixe. Agora iam chegar os americanos. Tinham sido eles a forjar aquele horror. Não havia esperança.
    O clarão iluminara o céu, uma luz branca, momentaneamente mais clara que ao meio-dia. Ele fechara os olhos, com a imagem do pinheiro a queimar-lhe a retina. Depois o ruído enchera os céus, imenso e atroador, tão forte que doía. Ele tapava os ouvidos enquanto a casa inteira estremecia e todas as janelas se despedaçavam e o vento seco e quente entrava de roldão, devastando tudo.
    Sem pensar, um homem num sonho de si próprio, levantara-se sacudindo da roupa fragmentos e partículas de vidro. Sem pensar, escovara a manga com a mão, e sentira a ferroada enquanto o sangue surgia em cada minúsculo corte dos seus dedos, da sua palma aberta. Sem pensar, dirigira-se para fora aos tropeções, tentando assimilar a enormidade do que acontecera. De repente tudo ficara escuro, como numa tarde de Inverno, mas o vento que soprava continuava quente. O fumo de um edifício incendiado dissipou-se e ele olhou na direcção da cidade, mas esta desaparecera. Tudo o que havia para norte fora obliterado, todos os pontos de referência arrasados. Nada que fosse vertical permanecia de pé, excepto aqui e além uma chaminé de fábrica, o esqueleto da estrutura de um armazém. Por toda a parte deflagravam pequenos incêndios, juntando o seu fumo ao manto cinzento que cobria tudo.
...
Espero ter proporcionado uma ideia da obra, interessante sobretudo para os amantes da cultura nipónica e da literatura em geral. Bem traduzido, por Manuela Madureira, e em português autêntico, ainda não contaminado pelo àcôrdjinho.

terça-feira, 29 de junho de 2010

A Arte do Chá - A Chawan


Chawan é a chávena, peça de porcelana em que se serve o chá, após devidamente batido pelo executante. Constitui um utensílio muito importante no Cha-no-Yu e é passível de constituir o centro de alguma conversa que se estabeleça entre os participantes. As chávenas podem chegar a ser caríssimas, se originárias de um grande mestre oleiro ou com muita tradição ou história. De qualquer modo é sempre um objecto muito querido pelos amantes desta arte. A etiqueta do ritual tem esse princípio em consideração ao estabelecer que os participantes numa cerimónia de chá não devem usar aneis nem quaiquer outros artefactos que possam ferir (riscar) a superfície da chawan, sob pena de estarem a provocar constrangimento e apreensão a quem lhes oferece chá.
Quem aceita o chá deve agradecer esse gesto amistoso, segurando sempre a chávena com as duas mãos, a esquerda como base de apoio e a direita para a dirigir e rodar conforme o estabelecido. É de bom tom, após tomar o chá e sentir a sua quentura, "perder" algum tempo observando a chawan... as suas faces, a sua parte frontal, as evidências do artesão, a sua delicadeza e beleza... e disso fazer reparo ao anfitrião, duma forma serena e positiva... e até questionar sobre a sua origem... sempre num tom que não se sobreponha ao do ambiente, nem impeça a percepção do murmúrio da água, da chuva ou do vento... lá fora e cá dentro. 

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O Murmúrio do Sentimento

Não sendo a cerimónia do chá (Cha-no-Yu) a plataforma mais adequada para se discutir a bola, dizer mal dos nossos políticos ou nutrir temas ainda mais hilariantes, os neófitos da arte do chá ficam constrangidos e até receosos sobre o que esperar duma "cena" daquelas e com dúvidas de como se comportarem. Essa situação de incerteza fica ainda mais marcada por depararem com algum exotismo oriental, por vezes o uso de kimono's e tatami's. Manter a serenidade é, entretanto, fundamental.
Sen-no-Rikyu, grande arquitecto do Sadô, costumava dizer que nada havia de especial na arte, que consistia apenas em juntar folhas de camellia sinensis com água quase fervente... e humildemente servir a infusão daí resultante aos convidados... O Mestre acrescentava ainda, quase à laia de desculpa, que era um inveterado bruto (que tal tivessem em atenção... pois mais nada era de esperar duma criatura assim)...
Aparentemente não é tão dificil assim. Depois de quebrado o gelo do constrangimento exótico, o neófito, de memória fresca e nutrida, observa o ritual do chá como algo fácil de decorar em poucos dias. E não está completamente errado, está a seguir a configuração natural do seu próprio tempo. Ser jovem é mesmo assim - ter certas faculdades aprimoradas, ser célere, desembaraçado, confiante, memorizador. O tempo, o mesmo tempo, se encarregará de lhe demonstrar que há um tempo para tudo.
A grande mensagem deixada por Sen-no-Rikyu é a do Sentimento (Kokoro, Kimochi). Assim, no contexto da arte, a técnica é bem pouco importante, comparada com o sentimento. Podemos até dizer que sem sentimento não há arte, por muita aparente técnica que exista. Saber disto, ter a noção desta forma de ver a arte, pode ser uma plataforma de alívio para o neófito mergulhado na confusão do Sentir a arte. Sem sentimento, de que vale a técnica?... Poderemos até perguntar, de que vale o chá?
Alguém já perguntou se a arte do chá não poderia materializar-se no consumo de café ou cerveja... em vez de chá. Pode dizer-se, respeitando o espírito da arte, que não seria a bebida ingerida que modificaria o essencial, desde que que com o apropriado sentimento. O chá funciona como um pretexto material para algo que se pretende mais sublime. O praticante da arte do chá gosta da bebida chá mas ela própria não constitui o mais importante da prática. Se não houvesse chá, poderia de facto ritualizar-se com outra qualquer bebida, mesmo com água. Quem oferece chá procura fazê-lo da melhor maneira, transmitindo o melhor de si.
Convencionou-se privilegiar o silêncio, ou pelo menos o desapego momentâneo a conversas mundanas e geradoras de preocupações. Quando se fala, no Cha-no-Yu, é sobre o próprio chá, sobretudo sobre os utensílios, sensações e prazer das coisas simples.

Gasshô

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Apontamentos da Arte do Chá

Costumo dizer que Sadô é uma arte de aprender a perder tempo... Tal como na maioria das artes nipónicas, a pressa não faz sentido, até porque se manifesta inimiga do sentimento. Os ocidentais, consumidores de chá numa vertente diferente, de marcação social e afirmação luxuosa, dificilmente entenderão a humildade e sobretudo o silêncio duma sessão de Cha-no-Yu. Quando digo silêncio, não me refiro à completa ausência de sons, sendo até que a percepção da sonoridade envolvente se revela como uma das delícias proporcionadas pela cerimónia, mas à ausência de conversas "importantes", como a discussão política ou social. Em Cha-no-Yu aprecia-se o som da água, quase fervente, e do manuseamento cerimonial dos utensílios presentes... bem como a melodia distante do tempo e das pessoas, aparentemente afastadas de nós. Com a calma que praticamos na arte, esperamos por elas, mantendo a água pura e quente... a chawan seca... e o macha (mátchá) bem verde... esperando a diluição da longínqua agitação urbana na espuma da meia-lua que oferecemos.
Gasshô.



O Culto do Chá (Contin.)






quinta-feira, 3 de junho de 2010

O Culto do Chá (cont.)






Venceslau de Moraes - O Culto do Chá

Como já tive oportunidade de referir, o chá foi introduzido na Europa pelos portugueses e não faz sentido iniciar o estudo do chá por autores estrangeiros, uma vez que dispomos de um livro de Venceslau de Morais sobre o tema.
Essa obra encontra-se digitalizada e será aqui postada em seguida.